Literacia Financeira é uma ferramenta de desenvolvimento pessoal e social

Rui Serôdio, Coordenador Cientifico do SINCLab-Social Inclusion Laboratory, assegura

Literacia Financeira é uma ferramenta de desenvolvimento pessoal e social

 

O mais recente estudo de Medição de Impacto Social do “No Poupar Está o Ganho” (NPEG), concluiu que 62,23% das crianças que participaram no NPEG melhoraram significativamente as suas Competências de Literacia Financeira (CLF). Para além disso, cerca de 22,87% das crianças e jovens que participaram no NPEG melhoraram a sua classificação na disciplina de Matemática.

De forma a compreender melhor os resultados constantes do estudo, a Fundação conversou com Rui Serôdio, Coordenador Científico do SINCLab-Social Inclusion Laboratory e Docente e Investigador da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto.

Fundação Dr. António Cupertino de Miranda - Os objetivos definidos pela Fundação Dr. António Cupertino de Miranda (FACM) foram alcançados?

Rui Serôdio - Em termos dos objetivos que dizem respeito à concretização da “missão” da FACM através do “No Poupar Está o Ganho” (NPEG) estes foram claramente alcançados e superados em toda a linha. Ficou, uma vez mais, demonstrado que o programa gera mudança, uma mudança que lhe é cientificamente atribuível. Independentemente de todo o conjunto de outros objetivos que “gravitam” em seu torno, o cerne do NPEG é sempre a promoção de Competências de Literacia Financeira (CLF). Tal como sucedeu, poderiam ter sido alcançados todos os outros objetivos de realização ou de resultado, mas se este não fosse alcançado, essa “missão de impacto” estaria fortemente comprometida.

Em termos dos objetivos que foram alcançados neste último triénio o resultado que é verdadeiramente surpreendente para a equipa do SINCLab é da elevadíssima percentagem de crianças que melhoraram as suas CLF. A mudança verificou-se em mais de 60% destas crianças, uma percentagem que supera por larga margem a que se verificara no estudo anterior.

FACM – A que se deveu esta mudança?

RS - A nossa conclusão a este respeito é de que tal resulta de todo o conjunto de mudanças muito substanciais que a FACM introduziu no modelo de implementação do programa, não só na ainda maior diversidade de ferramentas psicopedagógicas que fornecem para a sua concretização no terreno pelos professores, mas também pelas orientações mais aprofundadas que lhes são dadas a este respeito.

Muito provavelmente, atendendo à trajetória de progressiva demonstração de capacidade de gerar impacto social que o NPEG tem tido nos últimos anos, a FACM e os seus parceiros terão a justa ambição de continuar a aumentar essa mesma capacidade. Contudo, como considero que o programa é, na sua génese, uma intervenção que se orienta para o objetivo último de gerar desenvolvimento, inclusão e coesão social, esta é uma meta elevada e difícil de suplantar.

Parece-me que a ação do NPEG gravita em torno da nobre ideia de proporcionar igualdade de oportunidades de acesso a ferramentas que podem promover melhores condições de vida atuais e futuras dos seus participantes. Enquanto se mantiver o seu justo foco na necessidade de o fazer chegar a todas as pessoas, nomeadamente àquelas que se encontram em diversas formas de vulnerabilidade social, a baseline, o ponto de partida será sempre exigente e nem sempre estão reunidas as condições para que uma mudança de tão grande amplitude seja alcançada.

 

“Gerir o dinheiro, seja ele muito ou pouco, não é só fazer as contas certas com ele”

 

FACM - Qual a importância da literacia financeira para a uma cidadania ativa e mais informada dos jovens adultos?

RS - No seu sentido mais restrito, a gestão do dinheiro no quotidiano não é propriamente uma tarefa de elevada complexidade ou sequer um desafio ao nível de tantos outros com que as pessoas se confrontam. A questão fundamental é que “gerir o dinheiro”, seja ele muito ou pouco, não é só fazer as contas certas com ele.

A expressão “fazer contas à vida”, bem gasta de tão usada no seu sentido menos positivo, traduz bem os desafios que a literacia financeira pode ajudar a suplantar. Esta expressão foi cunhada sobretudo para transmitir a ideia de que é necessário pensar nas várias coisas que se devem assegurar com o dinheiro que se tem, antes de se tomar uma qualquer decisão a seu respeito. Pois bem, o maior problema é que os jovens contemporâneos têm vidas plenas de estímulos, de interesses, de motivações, de desejos mais ou menos realizáveis, de ambições que lhes parecem realistas, etc. Tudo isto são “sintomas” de desenvolvimento social. São excelentes sintomas de uma sociedade desenvolvida que é capaz de sustentar nas suas gerações mais novas esta forma de viver as suas vidas e de as projetar no futuro.

Contudo, “fazer as contas à vida” soa quase a reacionário para quem cresce no atual contexto de desenvolvimento social. Quando a vida era “pequena” e se ambicionava a “apenas” essa dimensão, fazer as contas era bem mais fácil do que é para as crianças e jovens de agora, que são as mulheres e os homens de amanhã. Estas e estes têm vidas verdadeiramente “grandes”, carregadas de potencialidades e de constrangimentos que são incomensuravelmente maiores do que eram para os seus avós.

É aqui que, a Literacia Financeira (LF) pode ter um papel fundamental a desempenhar, nomeadamente no contexto educativo e, particularmente, escolar. Em si mesma, a LF não é uma ferramenta para “fazer contas à vida”, é antes um utensílio que pode ajudar as crianças e jovens a irem criando condições pessoais para que possam viver a vida que lhes é possível ambicionar, e que, por definição, devemos todos querer que seja “sem limites”. Esses limites devem ser uma autorrealização, ou seja, deve ser o indivíduo a defini-los, a aperceber-se deles e sentir-se capaz de “traçar um plano” para os ultrapassar.

FACM – De que forma o programa “No Poupar está o ganho” contribui para tal?

RS - Programas como o NPEG fornecem justamente as ferramentas-base para que a gestão da vida financeira pessoal possa ser perspetivada desde idades bem precoces. Uma criança é ensinada bem cedo, e compreende, que “o dinheiro não chega para tudo”, que “não se pode dar um passo maior do que a perna” (expressão tão usada no chamado “período da troika”, e que quase infantiliza a explicação para uma crise económico financeira tão complexa), mas são-lhe dadas poucas ferramentas para perceber como pode ter-se capacidade pessoal de gerir tais constrangimentos.

Através de atividades bem concretas, o NPEG proporciona um vasto conjunto de oportunidades para que a criança ou jovem adquira uma forma mais adequada de se relacionar com o dinheiro e com aquilo que ele pode proporcionar. Querendo-o, um jovem facilmente faz as contas que lhe permitem perceber por que razão o orçamento familiar não permite que os seus pais lhe ofereçam algo que tanto ambiciona. Há toda uma panóplia de obrigações familiares que levam a que tal aconteça, umas visíveis e próximas, mas outras nem tanto, como os impostos, os seguros, a segurança social que os pais pagam, entre outros. Ora, o NPEG dá-lhes oportunidade de perceber todo um conjunto de “coisas intangíveis” que têm consequências na sua vida diária e assim gerir a suas expectativas e relação com o dinheiro. E esta relação, inevitavelmente, sustenta-se na sua relação com os pais, a figura que corporiza “o dinheiro”.

FACM - Nesse sentido, quais as potenciais consequências de uma literacia financeira limitada ou mesmo inexistente?

RS - Pode dizer-se que, potencialmente, são inúmeras. Há uma vastidão de possíveis consequências negativas nas vidas das pessoas que resultam de más decisões, pequenas ou grandes, relativamente ao seu dinheiro, nomeadamente por baixa literacia financeira. O exemplo do sobre-endividamento é o mais frequentemente citado. Mas, este é um problema que está muito para lá da incapacidade de as pessoas perceberem, por exemplo, o que são juros ou a imponderabilidade da sua situação laboral. Ora, a literacia financeira (LF), só por si, não impede que tais consequências se verifiquem. Há tantas contingências como fatores estruturais que suplantam o que a LF é capaz de contrapor, e elas tenderão a verificar-se.

Daí que devamos focar-nos na LF como ferramenta de desenvolvimento pessoal e social, nas consequências positivas que dela podem advir. Com competências mais sólidas para lidar com o dinheiro de forma mais informada, mas também com uma relação psicologicamente mais saudável com ele, o indivíduo pode antecipar consequências negativas e evitá-las, ou, pelo menos, preparar-se para elas. Sobretudo em fases de desenvolvimento, como a infância e a juventude, que podem ser estruturantes, “fundamentais”.

Mesmo, na vida adulta, é importante que o indivíduo aprenda a projetar a figura do dinheiro para lá do que ele representa no momento atual. Assim, poderá perspetivá-lo como uma ferramenta que tem limites no balanceamento entre o que se necessita e o que se deseja, entre o que é de agora e o que poderá vir a ser no futuro. Dito assim, parece complicado, mas com atividades concretas que o exemplifiquem, uma criança em idade escolar tem as ferramentas necessárias para apreender conceitos complexos de LF e, sobretudo, para criar novas formas de se relacionar com o dinheiro, com consequências positivas em todo o conjunto de relações do seu quotidiano que são afetadas por ele.

 

Nota: O estudo de Medição de Impacto Social do “No Poupar Está o Ganho!”, é desenvolvido pelo SINCLab – Social Inclusion Laboratory, Grupo de Investigação da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto (FPCEUP), em parceria com a Fundação Dr. António Cupertino de Miranda (FACM), com o objetivo de facultar à FACM a informação que permita o cumprimento das exigências definidas no quadro do Programa de Parcerias para o Impacto promovido pela Iniciativa Portugal Inovação Social (PIS).